Casa-Abrigo', a nova minissérie da RTP, serviu de mote para a conversa que tivemos com Rita Cabaço. A atriz dá vida a Gabriela, uma mulher que se viu marcada pela violência doméstica, mas que a tenta esconder recorrendo a "leveza" e "humor".
Rita Cabaço é considerada uma das atrizes mais talentosas da sua geração. Este ano foi muito elogiada pelas personagens que interpretou na série 'Ruído', também do primeiro canal, pensada por Bruno Nogueira. Fernanda Levezinho, que ficará para sempre marcada pelo grito "cala-te!", foi uma dessas personagens.
Tendo sido mãe este ano da pequena Clara, Rita Cabaço confessa-se "assustada" e ao mesmo tempo esperançosa quanto ao futuro. Acredita que é preciso começar a notar o outro, mais do que o próprio telemóvel, uma vez que as redes sociais estão a roubar o mais importante: a atenção.
Como é que se preparou para a personagem da Gabriela?
O processo de criação de personagem foi muito similar a outros projetos que tive no passado. O Márcio Laranjeira, que é o realizador da série, o argumentista, convidou-me para o projeto e começámos desde logo, muito antes de filmar, a ter conversas para pensar quem é que era então esta Gabriela. Na altura, quando me convidou, ele achava que esta personagem deveria, à partida, ser feita por uma atriz mais nova que eu - eu devia ter 28/29 anos - mas ao mesmo tempo tinha o desejo que fosse eu. Em conversa percebemos que as nossas se fundiam e se encontravam nesta proposta da Gabriela.
O processo foi esse: ler o guião juntamente com o Márcio e pensar quem é que é esta miúda num corpo de mulher que passou por um trauma muito violento no seio familiar, que a fez desde muito jovem sair de casa e tentar encontrar um espaço seguro que lhe permitisse emancipar-se.
A única questão aqui é que eu sabia que estava a trabalhar sobre um tema muito sensível, um tema que é muito urgente e que ainda hoje é o crime que mais mata em Portugal, e é um tema muito pouco falado, ou pelo menos quando é falado não é aprofundado.
Não é só uma personagem que está a passar por este problema, são todas, é uma casa-abrigo, é sobre mulheres que estão a passar, que se estão a reestruturar depois de um episódio de violência doméstica. Não é uma série sobre o ato da violência em si, nem sobre o agressor, é sobre estas mulheres que estão a aprender a viver, a aprender que é possível viver com liberdade, de uma forma segura e sem culpa.
É um papel que lhe traz uma enorme responsabilidade.
Sim. É uma grande responsabilidade estar a desempenhar um papel sobre pessoas que estão à nossa volta cada vez mais e nas quais terá um impacto diferente do que se fosse uma personagem fictícia. Nesse sentido tive um cuidado especial no aprofundamento da personagem, mas de resto estava a construir uma pessoa como todas as outras, nas suas contrariedades.
Gostava que ela tivesse uma leveza diferente das outras mulheres e que usasse um bocadinho dessa leveza e de um certo humor como carapaça para se proteger e para evitar tanto falar como pensar naquilo que viveu.
No caso da Gabriela, ela vive um bocadinho aquele estigma do 'puseste-te a jeito'. Quer dizer, então ela estava de minissaia, o que é que queria, não é? Então ela foi para a casa com ele, o que é que queria? O que é que gostava de transmitir com esta Gabriela às mulheres que estejam a passar ou que tenham passado pelo mesmo? Considera que poderá haver aqui uma identificação? Como disse, é um tema muito sensível de abordar.
Acho que sim. Tanto a Gabriela como as outras mulheres têm histórias que eu tenho a certeza que pessoas que estejam a passar pelo mesmo muito provavelmente se vão identificar.
No caso da Gabriela, ela vive um bocadinho aquele estigma do 'puseste-te a jeito'. Com o politicamente correto há mais cuidado em usar esse termo, mas continua, as pessoas continuam a achar isso e a pensar isso. Quer dizer, então ela estava de minissaia, o que é que queria, não é? Então ela foi para a casa com ele, o que é que queria?
A história da Gabriela não é isto exatamente, mas é um bocadinho esta coisa do ‘puseste-te a jeito’ pela tua forma de ser. A família, em vez de a proteger e de a defender, não acredita ou prefere não acreditar também para não ter que se envolver. Então, ela decide ir-se embora.
Tenho a certeza que vai haver muita gente que mesmo que não se identifique com a Gabriela enquanto pessoa, vai identificar-se com este episódio de violência e com esta história, tanto com a Gabriela como com as outras todos. Aliás, o Márcio baseou-se em pessoas reais para criar estas quatro personagens.
Já tinha trabalhado com o Bruno e conheço-o muito bem. Sabia que o facto de ser uma série dele ia ter um alcance muito grande, mas quando fazemos projetos novos, nunca sabemos se as pessoas vão gostarA Rita tem participado em vários projetos, um deles foi o 'Ruído'. Estava à espera que tivesse o sucesso que teve?
Já tinha trabalhado com o Bruno e conheço-o muito bem. Sabia que o facto de ser uma série dele ia ter um alcance muito grande, mas quando fazemos projetos novos, nunca sabemos se as pessoas vão gostar.
Aquilo que sabíamos é que nos estávamos a divertir horrores a fazer aquele projeto, mas depois, pronto, depende de muita coisa. O próprio formato era diferente, havia a esperança que as pessoas gostassem, mas não era uma certeza. Estava à espera que as pessoas achassem graça, mas sinceramente não esperava que tivesse o alcance que teve, principalmente através das redes sociais.
Chegou ao público brasileiro, inclusive.
Sim, a série acabou por viver muito mais nas redes sociais do que na própria televisão, e também foi pensada para isso. Foi pensada para ter outra vida através do digital. Fiquei muito feliz, mas não esperava que chegasse a tanta gente e de uma forma tão impactante para as pessoas.
Nas redes sociais muita gente disse que era a "Porta dos Fundos Portuguesa".
Tem que ver com o formato de sketch, o formato da pequena história que se encerra em si mesma, e que era um formato que já não existia há algum tempo. O Herman fazia, mas já não existia há muito tempo. O Bruno teve vontade de recuperar esse formato, e eu acho que funcionou, pelo menos o ‘feedback’ foi muito bom.
Qual foi o sketch amais difícil de gravar?
Foi com certeza um com o Bruno, porque temos um problema os dois, temos muita dificuldade em não nos rirmos um com o outro. Lembro-me de que tínhamos de parar em todos. Não sei se foi um das 'Histórias que marcam a História', da Fernanda Levezinho, ou aquele da loja da roupa, com o Albano [Jerónimo], esse também foi difícil, era muito estúpido e curto, mas lembro-me de ter tido muita dificuldade em não me rir nesse.
Os gritos da Fernanda Levezinho foram algo que lhe surgiu naturalmente na personagem?
O Bruno escreveu esta personagem a pensar em mim, não sei se isso é bom ou se é mau. Ele conhece-me muito bem. Sabia que ia encaixar de forma orgânica e natural. Filmámos os quatro sketches da Fernanda Levezinho num só dia e acabei praticamente afónica.
Foi muito divertido de fazer. É daqueles projetos que se pensa que é um bocadinho injusto chamarmos a isto de trabalho, porque é estar com uma equipa de que nós gostamos, com que nos sentimos bem. É um privilégio.
Se pudesse gritar "cala-te!" a alguém sem sofrer consequências, quem é que escolheria?
Tanta gente... Difícil escolher. Se calhar o primeiro-ministro de Israel. Também havia muitas outras pessoas, principalmente cá em Portugal, a quem me apeteceria dizer “cala-te”.
Tenho esperança de que a geração da minha filha, com as armas e as ferramentas que tiver, possa ajudar a voltar a virar isto, a reverter um bocadinho a história e a voltar a curar a democracia de alguma forma
A Rita foi mãe há pouco tempo. Assusta pensar que a sua filha crescerá num mundo como o de hoje?
Acho que é muito difícil não assustar. Pensámos [Rita Cabaço e a companheira] muito nisso antes de ela nascer, mas também temos esperança que a geração dela, com as armas e as ferramentas que tiver, possa ajudar a voltar a virar isto, a reverter um bocadinho a história e a voltar a curar a democracia de alguma forma.
Nesse sentido, o papel dos pais é mais importante do que nunca. Na visão da Rita, o que é mais importante de ser transmitido?
É dar-lhe ferramentas para que ela se sinta segura e confiante, primeiro para ter espírito crítico, para pensar por ela própria, para olhar para o mundo, e depois é nos exemplos que tem em casa e que tem ao redor dela, para se tornar uma mulher inteligente, segura, justa. É tentar criar uma pessoa atenta ao outro.
Há essa falta de atenção ao outro?
Temos demasiados estímulos à nossa volta que nos fazem não estar presentes. Não estar atento ao outro é o mais fácil hoje em dia, estamos muito autocentrados, por várias razões. Todo o desenvolvimento da tecnologia e das redes sociais e dos ecrãs, que são importantes e que nos ajudam em muita coisa... mas também nós, o ser humano, é aquele animal que rapidamente esgota as coisas. Leva ao limite, não é equilibrado em nada, e portanto não sabe utilizar essas ferramentas de uma forma saudável. E eu falo por mim também. Todos somos responsáveis pelo lugar onde estamos. Claro que uns tentam caminhar para um lado e outros para outro, mas somos responsáveis uns pelos outros.
Essa questão das redes sociais, até na representação se tem notado. Vemos atores que são escolhidos para determinados projetos porque têm muitos seguidores. Enquanto atriz, lida bem com isso?
Quando comecei a estudar teatro ainda não era assim. As pessoas eram escolhidas pelo seu perfil enquanto ator ou enquanto atriz. Com o surgimento e desenvolvimento das redes sociais, as coisas foram mudando um bocadinho, porque começou a perceber-se que, além de promover o projeto, se promovêssemos a imagem de cada ator, isso poderia promover também o projeto.
Isto é mesmo muito pessoal. Acho que haver projetos que escolhem atores e atrizes pelo número de seguidores diz mais sobre o projeto e sobre quem está a fazê-lo do que propriamente sobre outra coisa qualquer.
Para mim, o importante é as pessoas terem oportunidades iguais, que às vezes não acontece. Se há projetos que preferem escolher mediatismo, o resultado também vai ser em face disso.
A minha natureza é mais de me isolar na minha esfera familiar e amigos, não sou muito esta pessoa pública. É algo que não me é nada natural, mas faz parte. Às vezes tenho de forçar um bocadinho essa pessoa públicaA Rita já se sentiu tentada a alimentar mais as suas contas nas redes sociais a pensar nisso?
Penso que isso é um conflito que existe muito hoje em dia, é uma pressão que os atores e as atrizes sentem. Há aqui uma confusão, sentem que que se não se promoverem deixam de ter oportunidades de trabalho. Desaparecem. E a verdade é que isso acontece.
Acontece porque as pessoas hoje em dia vivem nas redes sociais. Alguém que esteja à procura de um ator vai às redes sociais para tentar ver as pessoas. E, sim, existe a pressão de eu se calhar devia estar a alimentar mais os meus conteúdos. Sofro um bocadinho com isso, porque a minha natureza é mais de me isolar na minha esfera familiar e amigos, não sou muito esta pessoa pública. É algo que não me é nada natural, mas faz parte. Às vezes tenho de forçar um bocadinho essa pessoa pública.
O meu trabalho deveria falar por mim, deveria ser suficiente para me promover. Mas as coisas mudaram e já não é assim que acontece. Um ator para se promover não basta o último trabalho que teve, tem de estar constantemente a promover [nas redes sociais]. Podes escolher fazer isso ou não, depois sofres as consequências.
Também, de algum modo, se estiveres num lugar de privilégio em que podes escolher, de certeza que vais viver de uma forma mais livre, sabes? E mais plena, porque estás a ser fiel à tua natureza e não estás refém daquilo que a indústria te está a fazer pensar ou a pressionar.
Para além desta minissérie da RTP, em que outros projetos o público poderá ver a Rita no futuro?
Agora estou a ensaiar um espetáculo do Marco Martins que vai estrear-se em dezembro, em Braga, mas também vai ao Porto e para Lisboa, em março, no CCB. O espetáculo chama-se 'Um Inimigo do Povo' e fala sobre a imigração em Portugal. É comigo, com o Rodrigo e com um grupo de pessoas - não atores, imigrantes aqui em Portugal.
Também vai estrear o novo filme de João Nuno Pinto no Festival de Talin e que, provavelmente vai estrear em Portugal ainda este ano nos cinemas. No próximo ano também vão haver muitas novidades.

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