Duas moçambicanas na rua em Lisboa…
Todos os dias, bem cedo, apanho o meu comboio na Gare do Oriente a caminho das minhas actividades do outro lado de Lisboa; raramente fico muito tempo neste local: o meu comboio, sempre pontual, é anunciado rapidamente. Demoro-me mais tempo, pela zona, quando compro as castanhas bem quentinhas que me fazem companhia para casa.
E hoje, na Gare do Oriente, depois de perder o meu comboio, decidi enfiar-me numa casa de livros de segunda mão que ali funciona e acompanhar os autocarros que chegam e partem. Passei pelo túnel e do outro lado da Gare vi pessoas que transformam mantas em verdadeiros tectos. O que eles sofrem com este frio e chuva! E ali identifiquei duas moças de Moçambique.
Eu ia passando, quando ouvi, atrás de mim, dois estrondos de vozes que falavam do frio de hoje e usavam o changana para se comunicar; fingi que endireitava os atacadores dos meus sapatos ensopados pela chuva. As duas moças, lindas, maquilhadas e com o rosto carregado de sono, ficaram visivelmente confusas e assustadas quando lhes saudei em changana, a nossa língua.
As duas moças, ameaçando-me chamar a polícia que por ali anda, encurralaram-se às pressas debaixo das suas mantas como duas serpentes. Cada uma tinha uma trouxa que servia de almofada. Deu-me dó ver as duas moças, da minha terra, empacotadas em mantas sujas como pequenos embrulhos de pobreza. Dei mais duas voltas e, quando espreitei do cimo das escadas, só vi as duas mantas abandonadas; as moças já se tinham evaporado.
Corri para o meu comboio a pensar nas duas moças. Devem ter sido vítimas dessa gente que anda, por aí, a distribuir falsas realidades sobre o que é viver em Portugal. Infelizmente, por cá, quase ninguém aceita dar a cara; todos fingimos que está tudo bem. Na zona da Amadora, já ouvi que há um casal de moçambicanos que passa as noites em edifícios abandonados, mas sem nunca dar a cara a outros moçambicanos.
Sérgio Raimundo - Militar

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